Estou com a leve
impressão que este tópico vai ficar meio longo; não sei se tanto quanto chato
ou sem pé nem cabeça, mas é isso que acontece quando resolvemos sair por aí
filosofando, querendo descobrir a América, colocar o ovo em pé, descobrir o
sexo dos anjos ou a pedra fundamental ou achar o Santo Graal e outras miragens
do tipo. Você roda roda e roda...até ficar tonto e se estatelar no chão...para
então descobrir que não saiu do lugar.
Tudo isso porque acabei de
ler o livro que cito e mostro no tópico "Quadrilha" e aí, ao
fechá-lo, fiquei com a nítida sensação de.....fudeu! Algo do tipo "se
ficar o bicho pega e se correr o bicho come".
Lá está dito,
"claramente", que é mole pro vasco levar uma vida leve, harmoniosa e
feliz: é uma receitinha básica como os bolos da vovó!
É "só"
esquecer o passado, nunca pensar no futuro e descartar prá lixeira qualquer
esperança. Fudeu II
Depois do ovo de
Colombo, lembrei-me do Sísifo. Acho que, no fundo, todos nós somos um pouco
Sísifo. Até o Chico já dizia que "todo
dia ela faz tudo sempre igual, me sacode às 6 horas da manhã..."
Ser Sísifo foi o castigo
que nos foi imposto por desejarmos tanto a imortalidade (mais abertamente ou de
modo velado e disfarçado, travestido em outras posturas da nossa vida) ou, o que
dá na mesma, negar a obviedade e certeza absoluta de que somos mortais;
nós, nossos amores e tudo mais. Nasceu...já começa a contagem regressiva. Nada
foge disso. Para Nietzsche, até a fé deve ser devidamente destruída a
marteladas, até virar pó! Fudeu III
Mas, voltando ao sísifo
de todos nós, prefiro apegar-me a Albert Camus e... vê-lo feliz,
levando sua pedra montanha acima! Aí aproveito e tiro o CD do Chico e troco
pelo do Gil onde ele nos diz que "o
melhor lugar do mundo é aqui e agora...!"
Que os sísifos de
todos nós sigam rolando suas pedras e curtindo a vida.
Quem sabe consigamos ultrapassar os 70 aninhos, com o pique louco deste
"imortal" Mick Jagger que, por mais de quarenta anos já fez de tudo
para virar pó (aí ele, com certeza, se cheiraria - rs)....e não virou. Segue
colecionando rugas, lucianas gimenez e outras drogas (sorry, Luciana), mas
curte tudo adoidado, prontinho prá cair morto, com a vida plenamente vivida e
aproveitada. No palco, fazendo
aquilo que ele escolheu para fazer em/na sua vida, ele parece um
adolescente de vinte e poucos anos! Pecados capitais à parte, é de dar inveja a
qualquer um! Torço para que ele morra dormindo, como um passarinho; fez por
merecer!
Se não rolarmos as
pedras com o pique do Mick...fudeu IV.
*Calma crianças: não
precisam sair por aí procurando o primeiro traficante da área ou correr até o
bar para beber todas e mais algumas! Estamos só simbolizando e ilustrando!
"Hoje é dia de rock, bebê" rs
Mas antes que chegue o
fudeu final (como diz o Woody Allen, "não
é que eu tenha medo da morte. Só não queria estar presente no dia que ela
chegar"), tentemos (que é sempre o que nos resta; tentar), olhar para
o Sísifo com os olhos do Camus. Tentemos beber, sorver, absorver, nos
contaminar e enxergar nosso lado sísifo, com os olhos do Camus...
Será que dá?? Senão....
... Si si fudeu, e desce
o caixão!
Vou deixar a
"visão" do Camus com a amplitude que acho que ela merece. Se isso
confirmar que o post ficou longo, cansativo e um exemplo a mais da busca do
TODO, encontrando o NADA, desligo também o CD do Gil e fico em silêncio, nada
ouvindo, vendo ou falando!
O MITO DE SÍSIFO
Os deuses tinham
condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma
montanha, de onde a pedra caía de novo, em conseqüência do seu peso. Tinham
pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho
inútil e sem esperança.
A acreditar em Homero,
Sísifo era o mais ajuizado e mais prudente dos mortais. No entanto, segundo
outra tradição, tinha tendências para a profissão de bandido. Não vejo nisto a
menor contradição. As opiniões diferem sobre os motivos que lhe valeram ser trabalhador
inútil dos infernos. Censura-se-lhe, de início, certa leviandade para com os
deuses. Revelou os segredos deles. Egina, filha de Asopo, foi raptada por
Júpiter. O pai espantou-se com esse desaparecimento e queixou-se dele a Sísifo.
Este, que estava ao corrente do rapto, propôs a Asopo contar-lhe o que sabia,
com a condição de ele dar água à cidadela de Corinto. Aos raios celestes,
preferiu a bênção da água. Por tal foi castigado nos infernos. Homero conta-nos
também que Sísifo havia acorrentado a Morte. Plutão não pôde suportar o
espetáculo do seu império deserto e silencioso. Enviou os deuses da guerra, que
soltou a Morte das mãos do seu vencedor.
Diz-se ainda que,
estando Sísifo quase a morrer, quis, imprudentemente, pôr à prova o amor de sua
mulher. Ordenou-lhe que lançasse o seu corpo, sem sepultura, para o meio da
praça pública. Sísifo encontrou-se nos infernos. E aí, irritado com uma
obediência tão contrária ao amor humano, obteve de Plutão licença para voltar à
terra e castigar a mulher. Mas, quando viu de novo o rosto deste mundo, sentiu
inebriadamente a água e o sol, as pedras quentes e o mar, não quis regressar à
sombra infernal. Os chamamentos, as cóleras e os avisos de nada serviram. Ainda
viveu muitos anos diante da curva do golfo, do mar resplandecente e dos
sorrisos da terra. Mercúrio veio pegar no audacioso pela gola e, roubando-o às
alegrias, levou-o à força para os infernos, onde o seu rochedo já estava
pronto.
Já todos compreenderam
que Sísifo é o herói absurdo. É-o tanto pelas suas paixões como pelo seu
tormento. O seu desprezo pelos deuses, o seu ódio à morte e a sua paixão pela
vida valeram-lhe esse suplício indizível em que o seu ser se emprega em nada
terminar. É o preço que é necessário pagar pelas paixões desta terra. Não nos
dizem nada sobre Sísifo nos infernos. Os mitos são feitos para que a imaginação
os anime. Neste, vê-se simplesmente todo o esforço de um corpo tenso, que se
esforça por erguer a enorme pedra, rolá-la e ajudá-la a levar a cabo uma subida
cem vezes recomeçada; vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro
de um ombro que recebe o choque dessa massa coberta de barro, de um pé que a
escora, os braços que de novo empurram, a segurança bem humana de duas mãos
cheias de terra. No termo desse longo esforço, medido pelo espaço sem céu e
pelo tempo sem profundidade, a finalidade está atingida. Sísifo vê então a
pedra resvalar em poucos instantes para esse mundo inferior de onde será preciso
trazê-la de novo para os cimos. E desce outra vez à planície.
É durante este
regresso, esta pausa, que Sísifo me interessa. Um rosto que sofre tão perto das
pedras já é, ele próprio, pedra! Vejo esse homem descer outra vez, com um andar
pesado mais igual, para o tormento cujo fim nunca conhecerá. Essa hora que é
como uma respiração e que regressa com tanta certeza como a sua desgraça, essa
hora é a da consciência. Em cada um desses instantes em que ele abandona os
cumes e se enterra a pouco e pouco nos covis dos deuses, Sísifo é superior ao
seu destino. É mais forte do que o seu rochedo.
Se este mito é
trágico, é porque o seu herói é consciente. Onde estaria, com efeito, a sua
tortura se a cada passo a esperança de conseguir o ajudasse? O operário de hoje
trabalha todos os dias da sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é
menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que ele se torna
consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda
a extensão da sua miserável condição: é nela que ele pensa durante a sua
descida. A clarividência que devia fazer o seu tormento consome ao mesmo tempo
a sua vitória. Não há estino que não se transceda pelo desprezo.
Se a descida se faz
assim, em certos dias, na dor, pode também fazer-se na alegria. Esta palavra
não é demais. Ainda imagino Sísifo voltando para o seu rochedo, e a dor estava
no começo. Quando as imagens da terra se apegam de mais à lembrança, quando o
chamamento da felicidade se torna demasiado premente, acontece qua a tristeza
se ergue no coração do homem: é a vitória do rochedo, é o próprio rochedo. O
imenso infortúnio é pesado demais para se poder carregar. São as nossas noites
de Gethsemani. Mas as verdades esmagadoras morrem quando são reconhecidas. Assim,
Édipo obedece de início ao destino, sem o saber. A partir do momento em que
sabe, a sua tragédia começa. Mas no mesmo instante, cego e deseperado, ele
reconhece que o único elo que o prende ao mundo é a mão fresca de uma jovem.
Uma frase desmedida ressoa então: "Apesar de tantas provações, a minha
idade avançada e a grandeza da minha alma fazem-me achar que tudo está
bem." O Édipo de Sófocles, como o Kirilov de Dostoievsky, dá assim a
fórmula da vitória absurda. A sabedoria antiga identifica-se com o heroísmo
moderno.
Não descobrimos o
absurdo sem nos sentirmos tentados a escrever um manual qualquer da felicidade.
"O quê, por caminhos tão estreitos?..." Mas só há um mundo. A
felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. São inseparáveis. O erro
seria dizer que a felicidade nasce forçosamente da descoberta absurda. Acontece
também que do sentimento do absurdo nasça da felicidade. "Acho que tudo
está bem", diz Édipo e essa frase é sagrada. Ressoa no universo altivo e
limitado do homem. Ensina que nem tudo está, que nem tudo foi esgotado. Expulsa
deste mundo um deus que nele entrara com a insatisfação e o gosto das dores
inúteis. Faz do destino uma questão do homem, que deve ser tratado entre
homens. Toda a alegria silenciosa de Sísifo aqui reside. O seu destino
pertence-lhe. O seu rochedo é a sua coisa. Da mesma maneira, quando o homem
absurdo contempla o seu tormento, faz calar todos os ídolos. No universo
subitamente entregue ao seu silêncio, erguem-se as mil vozinhas maravilhosas da
terra. Chamamentos inconscientes e secretos, convites de todos os rostos, são o
reverso necessário e o preço da vitória. Não há sol sem sombra e é preciso
conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e o seu esforço nunca mais cessará.
Se há um destino pessoal, não há destino superior ou, pelo menos, só há um que
ele julga fatal e desprezível. Quanto ao resto, ele sabe-se senhor dos seus
dias. Nesse instante sutil em que o homem se volta para a sua vida, Sísifo,
regressando ao seu rochedo, contempla essa seqüência de ações sem elo que se
torna o seu destino, criado por ele, unido sob o olhar da sua memória, e selado
em breve pela sua morte. Assim, persuadido da origem bem humana de tudo o que é
humano, cego que deseja ver e que sabe que a noite não tem fim, está sempre em
marcha. O rochedo ainda rola.
Deixo Sísifo no sopé
da montanha! Encontramos sempre o nosso fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade
superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também julga que tudo
está bem. Esse universo enfim sem dono não lhe parece estéril nem fútil. Cada
grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma
por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher
um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.
Albert Camus
Nasceu na Argéilia
(Mondovi) 07/11/13
Morreu na França
(Paris) janeiro 1960
Prêmio Nobel da
Literatura em 1957
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